Prólogo: Noite de folga (?)
As noites em Roma nunca eram menos que agitadas. Dificilmente não se encontrava bares ou danceterias cheios de gente querendo beber e dançar até o amanhecer. Uns, porém, queriam conversar ou encontrar um parceiro ou parceira que pudessem levar para a cama.
O segundo caso era o dele. Embora ele não fizesse tal coisa com frequência, pois suas folgas eram muito poucas desde ter se formado na academia de polícia na Sicília. Aquela noite era seu descanso mensal de dois dias. Queria aproveitar enquanto pudesse, pois no dia seguinte tinha de voltar ao trabalho. E se tinha uma coisa que ele sabia era sobre o Capitão Koscina ser um chefe muito exigente. Especialmente dizendo respeito aos oficiais da Polícia Armada da Seção Zero, ou simplesmente, ZAC, o topo da elite da força policial italiana. Acima até da própria polícia federal da Itália.
“O lugar está mais cheio que os metrôs no fim de tarde”, pensou ele enquanto pedia licença na base da dança. Se bem que até valia a pena fazer daquele jeito, pois o local estava tocando músicas dos anos setenta, suas favoritas no gênero “pop dance”. A única coisa da qual não gostava era de mãos bobas tentando agarrar seu traseiro ou coxas enquanto ele passava. Desviava quando achava que uma delas estava chegando. Era verdade que em um lugar daqueles isso podia acontecer, mas custava alguma coisa as pessoas terem um mínimo de respeito pelo corpo alheio? Se bem que dificilmente os homens reagiam mal aquele tipo de assédio, já que podiam ser considerados “maricas” se não agissem como “machos”. As mulheres, por sua vez, brigavam com os assediadores ou tinham de andar acompanhadas porque alguns idiotas não sabiam o seu lugar. Suspirou chateado com como as pessoas sabiam ser sem noção.
- Michelino! – ele viu-se enlaçado por um abraço que quase o sufocou.
- Francesco, avisa quando você chega com esse abraço de urso polar! Você quase me mata pela milésima vez! Você não percebe a sua força de jogador de futebol? – respondeu o abraçado soltando-se a muito custo apesar de ter retribuído o abraço.
- Desculpa, mas te ver aqui é um bálsamo! Ainda mais quando eu tô mais entediado que guarda florestal em feriado! – riu o recém-chegado dando um tapinha nas costas do amigo, que quase foi ao chão. E se perguntou como diabos Francesco estaria entediado em um lugar daqueles.
- De novo, você quase me faz dar de cara no chão com os seus cumprimentos efusivos. Bem, pelo menos existe alguém fisicamente mais apto que eu, o que me alivia – comentou “Michelino” suspirando.
- Eu mais apto que você, Michele? Nem se eu tivesse cinco encarnações e fosse o Flash. Cara, você não tá no topo da elite policial por nada – disse Francesco indicando que fosse com ele para a área vip, ao que o outro tentou reagir contra, mas foi impedido: - Sempre que eu venho pra Roma, você é meu convidado e sabe bem disso. Ainda mais porque a pista tá lotada e nem na porrada você ia conseguir dançar sem esbarrar em uns quinze a cada dois passos.
- Aceito desde que você não me faça competir em outra disputa de quem bebe mais. Naquela vez eu quase entrei em coma alcóolico e o papai queria me matar por conta da horrenda ressaca do dia seguinte – respondeu ele relembrando um sério vexame que tinha passado.
- Eu é que não quero o Capitão Koscina correndo atrás de mim com uma arma! Fujo de bala igual o diabo da cruz! – replicou o outro sem poder esquecer quando o pai de criação do amigo lhe dera uma bronca tão forte que quase o ensurdeceu de um ouvido.
- Esquece isso. Quero comer alguma coisa. Saí sem comer porque queria experimentar algo diferente hoje. Espero que pelo menos tenha alguma coisa realmente boa pela qual valha a pena gastar – disse Michele acompanhando o amigo.
- Lá em cima tem comida a dar com porrete. E não apenas isso, te garanto – replicou seu amigo com certa malícia.
- Se você tiver falando de garotas de programa, esquece. Não vou pagar por algo que faço de graça. Ainda mais porque tenho várias... – ele dizia quando Francesco o interrompeu: - Tudo bem, entendi. Não precisa explicar o que todo mundo sabe.
O futebolista do Internazionale de Milan conhecia bem até demais os peculiares hábitos do amigo de escola. Michele nunca tinha colocado um cigarro, droga ou bebida, exceto vinho, na boca. Nunca fazia sexo com prostitutas. Preferia conquistar a parceira. Tanto que todas as parceiras de cama ficavam suas amigas, pois ele sempre era sincero quanto às suas reais intenções. Quem topava, ia. Quem não queria, era livre para ir embora, mas ficava com o número se desejasse. Ajudava que ele nunca era menos do que amável e bom de conversa. Conhecia de tudo e mais um pouco e dificilmente a munição verbal acabava quando o assunto encerrava. Além de apreciar boa música. Claro que a aparência sempre impecável e bem cuidada colaborava. Vestia-se e perfumava-se com esmero. Tinha a barba sempre bem feita, embora não usasse, pois ele sempre reclamava que os pelos coçavam ou encravavam. Em suma, ele era bem vaidoso.
Francesco pensava que como seu amigo existiam poucos. Os dois logo entraram na área vip, onde um segurança conferiu as credenciais dos dois. O jogador usava a pulseirinha da danceteria e tinha dado outra para o amigo. Não demorou cinco minutos para que os vips soubessem quem era o acompanhante de Francesco Fornasari, o ás meio campo do Inter de Milan. Uns o olharam com alguma desconfiança. Outros não deram muita bola, já que até as autoridades tinham vida pessoal. Pelo menos três garotas se aproximaram querendo conversa e algo mais, porém, foi uma loira de vestido rosa ao fundo que o atraiu. Ela era bonita. Parecia muito familiar. Observou-a bem. Viu-se um tanto incrédulo.
- Paula, é você? – perguntou Michele se aproximando.
- Sim, sou eu. Eu lembro de quando meu irmão estudou aqui com você. Você não mudou muito, Andreatti – respondeu ela largando a revista que lia.
- Já você... desenvolveu. Muito – respondeu ele sorrindo largamente, pois por mais respeito que tivesse com as mulheres, às vezes não resistia a falar demais.
“Ele já ganhou a noite dele”, pensou Fornasari rindo e pedindo que os outros o deixassem a sós com Paula, que riu ao ouvir aquilo e o convidou para sentar: - Já ouvi falar do seu “jeitinho” com as garotas. E eu gosto do que vejo.
- Igualmente, Paula – sorriu ele. E ambos sentiram que o local de repente estava cheio demais.
...
Michele Andreatti acordou no meio da madrugada com o telefone tocando a todo o volume. E com a garota ainda enroscada nele após uma noite bem agitada. E acima de todas as expectativas, pois tinha sido o melhor sexo da vida dele em meses. Serviço de quarto àquela hora? Não podia ser. Atendeu um tanto receosamente, afastando o telefone do ouvido quando ouviu o pai de criação aos gritos com todas as reclamações típicas de gente preocupada. Uma delas sempre sendo essa: Quantas vezes avisei para levar o telefone consigo e deixar ligado?!
O policial deixou seu interlocutor se acalmar. Respondeu com calma: - Não sei se você lembra ou ignora, pai, mas é minha folga de dois dias. Eu estava me divertindo e não queria ninguém tentando me interromper.
- Eu sei, mas você também devia saber que qualquer coisa pode acontecer. E nesse exato momento o ZAC inteiro está atrás de você. Ainda bem que o Francesco atendeu ao telefone logo que liguei. Portanto, desça agora mesmo! Preferencialmente vestido e recomposto, por favor – Italo Koscina, o capitão da ZAC de Roma, suspirou alto.
“Não acredito nisso! Io ucciderò quel figlio di una cagna!”, pensou Michele furioso enquanto se vestia. E se recompunha, pois não seria bom se aparecesse daquela maneira na frente do capitão. Ele ainda tinha muito fogo para apagar com aquela deliciosa loirinha americana, mas isso ia ter que esperar. Sinceramente quis que não demorasse.
Desceu ao térreo, onde Koscina já o esperava, bastante impaciente: - Caso pergunte, é urgente. Não me daria ao trabalho de vir te buscar aqui se não fosse.
- Pela sua cara, é algo realmente grave – respondeu ele observando as reações do capitão, pagando a conta do motel e deixando um bilhete para Paula.
- Mais do que pensa. E francamente, muito me admiro que você tenha ignorado meus avisos sobre o seu telefone – Koscina olhou-o sério, mas no fundo o entendia.
- Não sou vidente, sabia? – disse ele pegando as chaves do carro no casaco.
- Você não se lembra do que eu te ensinei? – Koscina olhou-o sério.
- Nunca se sabe quando o perigo ataca, por isso sempre fique atento – respondeu Andreatti saindo com o capitão.
- Ainda bem que você lembra pelo menos – respondeu o mais velho com cara de poucos amigos.
- Tem como você me contar o que tá havendo? – perguntou o rapaz entrando no veículo.
O capitão logo entrou no banco do carona: - Posso desde que você não chegue ao ZAC mostrando que já sabe antes dos outros. Afinal, sabemos o que muitos pensam sobre isso.
- Nesse ponto você pode sempre contar com a minha descrição, pai – respondeu ele sorrindo.
Michele Andreatti calou-se quando Italo Koscina sinalizou que começaria a falar. A história levou pelo menos cinco minutos para ser contada, incluindo os detalhes, que até ali não eram muitos.
- Operação envolvendo contrabando de eletrônicos, drogas e armas tendo Bergamo como ponto de transferência? Eu imagino que tem conivência policial nisso, dado o que você me disse e o fato de que muitas autoridades têm amizade com os safados da máfia – Michele por fim disse.
- Até o presente momento, não temos muita informação quanto a isso. Portanto, não salte para conclusões antes de investigar todas as probabilidades. Outra coisa que te ensinei – o capitão olhou-o sério porque conhecia bem o filho de criação.
- Eu aprendi tudo o que você me ensinou, mas quando se trata da máfia, eu fico com os pés atrás pelo menos um quilômetro – replicou Andreatti com a cara fechada.
- Michele, falando como seu pai agora... Eu entendo como você se sente e que seu passado ainda te afeta, mas não deixe que ele interfira no seu julgamento. Qualquer passo errado em um caso desses pode ser fatal. E eu não quero te perder – Italo quase chorou ao dizer aquilo.
- Vou tomar cuidado, seja lá o que eu tenha de fazer, prometo – Michele suspirou sem imaginar o que viria.
...
O oficial Andreatti via-se incrédulo com a situação onde se via metido.
Usava um terno bastante envelhecido e tinha a barba por fazer somada com um ridículo bigode de ator pornô do começo dos anos setenta. As unhas estavam longe de estar em bom estado. Um disfarce muito bem criado pelos designers da polícia responsáveis por esse departamento. Ainda por cima carregava uma mala que já conhecera dias melhores carregada de roupas velhas. E dentro do fundo falso dela, bem escondido, seus aparatos de comunicação e suas credenciais de oficial do ZAC. Além de um ridiculamente grande sanduíche de baguete recheado de calorias que comeria no caminho. De todas as coisas em que o comandante Torschello podia ter pensado, fazê-lo ir para Bergamo da Sicília disfarçado de pobretão desempregado era algo insólito.
Não que Michele odiasse isso, mas tinha de confessar que morria de medo de alguém acabar descobrindo seu disfarce. O físico altamente treinado não iria colaborar na hora de convencer alguém de que era somente um servo desempregado procurando trabalho.
Se bem que não era como se na Sicília faltasse homens que, mesmo sem ser treinados, davam de dez a zero em cima de policiais como ele. Afinal, não era nada raro ver gente correndo loucamente pelas ruas e escadas das pequenas cidades. Carregando todo o santo dia toras de madeira da grossura de árvores milenares e caixas que pesavam pelo menos cem quilos ou acima disso. Ou fugindo dos policiais que os pegavam roubando ou de mafiosos querendo acerto de contas. Muitos meninos de menos de vinte anos, dependendo da genética, muitas vezes tinham um corpo tão desenvolvido a ponto de uns quantos acharem que eles tomavam esteroides.
Não raramente pensaram isso quando ele superava com folga os veteranos nas provas físicas da academia de polícia. Tinha sido o único recruta da polícia a tirar notas perfeitas em todas as provas físicas e mentais, tanto na força siciliana quanto no ZAC, para o qual tinha sido promovido dois anos antes após uma bem sucedida missão de combate ao terrorismo. Na qual tinha quase morrido ao levar um tiro no tórax.
Mal sabiam eles quanto estudo, aprendizado e dedicação estavam envolvidos nisso. Desde que, aos dez anos, tinha sido adotado pelo Capitão Koscina e começara a estudar na escola topo da elite estudantil de Roma. Onde tinha inicialmente criado, ainda que não quisesse, inimizade com Francesco Fornasari, hoje seu melhor amigo. E de tudo o que já havia vivido desde então.
Michele Andreatti, porém, não tinha ideia do quanto aquela missão poderia ser complicada.